sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 07

CONTO

Aventuras e Desventuras de um Sujeito Enviesado nas Laboriosas Terras Tupiniquins

O Sujeito Enviesado conseguiu um novo emprego, após uma temporada desastrosa de penúria e desencanto pela vida, e foi trabalhar normalmente, se é que se poderia chamar de normal o seu comportamento enviesado. De fato, foi um choque saber que tinha sido aceito por aquela empresa de renome internacional, de grande porte, de diretores que posavam impassíveis para fotografias glamurosas que saíam em revistas versadas em negócios. Quando esteve frente a frente com a moça do RH, que lhe passou os detalhes burocráticos sobre o novo emprego, o Sujeito Enviesado esteve mesmo a ponto de ingenuamente perguntar: “Por que vocês me contrataram?” Afinal, ele tinha fundamentadas dúvidas se contratariam alguém como ele para alguma coisa séria na vida. Mas o fato é que foi contratado e precisava tomar as providências cabíveis para se enquadrar no molde exato do cargo. Lembrou do dia em que foi preencher o formulário de solicitação de emprego (tinha uma desconfiança incontornável quanto ao emprego da tecnologia de comunicação, por isso não usava internet, nem tinha celular). Os funcionários do Departamento de Recrutamento e Seleção da empresa o orientaram para que usasse a internet para esse fim, mas ele se recusou terminantemente. Brandiu com razoável articulação alguns argumentos vagos sobre discriminação, até que os funcionários resgataram, mal-humorados, um formulário desgastado em alguma gaveta perdida, e pediram para que ele preenchesse. Houve outros pequenos entreveros, já que ele se complicou em itens prosaicos como “religião”. Ao indagar a um funcionário sobre o que a empresa entendia por “religião”, foi aconselhado a deixar esse campo do formulário em branco, porque se tratava de uma pergunta antiga, típica do formulário antigo. Ao se levantar pela terceira vez para tirar outra dúvida, ouviu em alto e bom som que bastava preencher os campos dos quais tinha certeza quanto ao preenchimento. O tom de voz não deixava margem para discussões, de maneira que foi assim que ele procedeu. E acabou empregado, para espanto dele próprio. Assumiu, então, seu posto numa baia impessoal, onde se isolou no meio de um monte de gente, fazendo um serviço que não compreendia bem, já que não tinha idéia de como aquilo se encaixava no todo da corporação. Quinze dias se passaram até que foi chamado para uma reunião com a chefia, na qual brotou o seguinte diálogo:
- Gostaria que o senhor esclarecesse porque está descendo com outros funcionários para o térreo do prédio, quando estes vão fumar, se o senhor não fuma?
- Nada demais – respondeu o Sujeito Enviesado. Percebi que os fumantes descem regularmente até o térreo para fumar, dando vazão a um vício que não conseguem controlar. Não acho que esta empresa privilegie de alguma forma um funcionário em detrimento de outro. Por isso, constatando que meu grande vício é ler, e que isso não deveria ocorrer no meu posto de serviço, desço com os fumantes para poder ler em paz. Claro que fico chateado com essa situação, assim como imagino que os fumantes também ficam, porque os não viciados não podem largar o serviço com tanta freqüência como nós – os viciados – fazemos, mas o vício cobra sua urgência, de maneira que não temos opção.
- Entendo – disse o chefe, mas o seu semblante desmentia sua afirmação.
O chefe teve de se aconselhar com seu próprio chefe, o qual apenas fingiu escutar, sem realmente estar ouvindo aquela bobagem, orgulhoso que era de ter um ouvido seletivo, que automaticamente descartava assuntos desinteressantes. Além disso, o chefe do chefe ficou o tempo todo da reunião checando mensagens, torpedos e notícias no seu iPhone geração 3 (enquanto pensava quando é que trocaria pelo da geração 4, assunto que trataria na seqüência, assim que seu subordinado saísse da sala), de maneira que houve um certo grau de dificuldade nos trâmites da comunicação naquela reunião. Ao fim, o chefe do Sujeito Enviesado, desanimado, perguntou o que deveria fazer com aquele funcionário esquisito, promovê-lo? O chefe do chefe, profundamente absorto consigo mesmo e ignorando a ironia da pergunta, apenas balançou afirmativamente a cabeça, enquanto sua mão já pousava sobre o telefone na mesa para ligar para a secretária, pois urgia tratar da troca do seu aparelho celular, que já estava inapelavelmente ficando obsoleto a olhos vistos, gestual que foi interpretado como ‘concordo e reunião encerrada’. E assim o Sujeito Enviesado acabou sendo promovido com pouco tempo de casa, o que o chateou sobremaneira, porque não era justo. Como ele relutasse um pouco com a situação inusitada, houve outro ruído na comunicação, já que seu chefe entendeu que a questão era salarial, e assim o salário do Sujeito Enviesado foi aumentado além do que foi proposto inicialmente. Assim não sobrou outra atitude a não ser pedir demissão, o que o Sujeito Enviesado fez assim que pôde, o que voltou a colocar sua vida nos eixos. Eixos enviesados, é claro, mas quem é que pode querer a perfeição nesses tempos malucos de hoje? Nos falamos.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 06

Você já ouviu falar do Paradoxo do Livro Chato (PLC, para simplificar)? Em inglês é conhecido como Boring Book Paradox (BBP), e suas origens se perdem nas brumas do tempo porque, dizem as más línguas (ou, pelo menos, as línguas mais ferinas), o PLC/BBP surgiu junto com Gutemberg (gráfico alemão que inventou os tipos móveis, que resultou na forma moderna de impressão de livros e jornais), lá pelos idos do século XV. Ou seja, como diria o filósofo brasileiro Juca Chaves, assim que o homem inventou o cinto de castidade, na seqüência veio o abridor de latas. Tão logo os livros começaram a ser impressos em série, já surgiu o PLC em todo o seu esplendor. Há registros, não confirmados, de que Shakespeare já lamentava a existência do PLC. Vai se saber! Afinal, nem mesmo a existência de Shakespeare é absolutamente confirmada. Mas isso já é outra história. Outras correntes do pensamento literário atribuem a James Joyce o surgimento do PLC, depois da publicação do calhamaço que é o livro mais famoso de sua (dele) autoria, “Ulisses”, com 900 páginas, em que se descreve UM dia na vida do Sr. Leopold Bloom (para ser mais exato, o decorrer de 16 horas do dia 16/06/1904). Aliás, você sabia que se comemora o Bloomsday todo dia 16 de junho – ao redor do mundo e inclusive no Brasil (aqui em pubs de origem irlandesa)? E que na Irlanda, país de nascimento do prolixo escritor, 16/06 é feriado nacional (talvez o único feriado decorrente de um livro laico e de ficção no mundo todo)? Há uma tese, não confirmada, de que Joyce escolheu 16/06 como data símbolo porque foi o dia em que teve o primeiro contato sexual com a sua futura esposa, Nora Barnacle. Claro que há controvérsias a esse respeito, mas que é curioso, isso é. Como diz o dito popular: se a lenda é mais interessante que os fatos, divulgue-se a lenda! E 16/06 (de 1950) foi o dia da inauguração do Estádio Mário Filho, o Maracanã. E também a data do Levante de Soweto (em 1970, na África do Sul, ainda no vigor do tenebroso sistema do apartheid, que segregava brancos e negros), quando morreu o jovem Hector Pieterson. Mas também são outras histórias. O certo é que muita gente tem vergonha de dizer que não conseguiu ler “Ulisses”, porque intimamente tem a mais plena certeza de que ele se insere na ampla categoria dos livros chatos, mas publicamente isso seria equivalente a passar um atestado de ignorância e intelecto fraco. Aconteceu comigo recentemente com o livro “Jogo da Amarelinha” do argentino Júlio Cortazar, livro aclamado mundialmente como um clássico da literatura latino-americana. E quem disse que eu consegui ler o cartapácio? Com a serenidade devida (e um diabinho assoprando no meu ouvido que eu não tenho o lastro cultural suficiente para encarar uma empreitada dessas), guardei o livro na estante, onde ele vai aguardar por dias melhores. Ou não. Mas a questão do PLC é a seguinte: acabei de ler “À sombra do vento”, escrito pelo espanhol Carlos Ruiz Zafón. Li que se trata de uma narrativa “eletrizante”, mas no meu caso isso poderia ser descrito mais como “maçante”. Acho que sobra escrita no livro, mas falta literatura. O estilo é sombrio de cabo a rabo, mas isso mais me irritou, de tanta repetição, do que entusiasmou, porque a mim soou um pouco forçado. As descrições são repetitivas e sem imaginação, utilizando-se de termos pretensamente líricos, mas que no fundo são – mesmo – kitsch. Por isso a leitura se arrastou e fiquei um tempão tentando vencer as mais de trezentas páginas do livro, porque optei por não desistir. Acabada essa leitura, passei para “A solidão dos números primos”, do italiano Paolo Giordano. No último domingo, quando comecei a leitura, já cheguei à página cento e cinqüenta. Ou seja, rapidamente vou acabar de lê-lo. Aí está o PLC: um livro chato, que nos aborrece, tem sua leitura feita de forma lenta, tomando um tempo além do razoável; e um livro muito interessante, que prende nossa atenção e tem o dom de deixar-nos ansiosos por saber o desenrolar da história, é devorado em um tempo curto. Descobri que dedico mais tempo a um livro chato do que a um livro interessante. Isso é ou não é um paradoxo? E me lembrei da leitura que fiz, há muito tempo atrás, de “A fogueira das vaidades”, do Tom Wolfe, que eu atrasava de propósito, tentando ler de forma mais lenta, para poder usufruir mais tempo de uma leitura agradável e prazerosa. E, falando sério: não existe PLC ou BBP. Pelo menos não formalmente, como apresentei aqui. Foi apenas um pequeno floreio ficcional, que acabo de inventar, para ilustrar algo real. Mas não pareceu verdadeiro? Nos falamos.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 05

“Seu Garçom, faça o favor de me trazer depressa: um bom pingado (que não seja requentado), com café 100% arábica, moído na hora, feito no coador (espresso, cafeteira italiana e extração francesa também servem, obrigado, mas hoje eu não quero), com um pingo de leite integral fresco e quente (se não for um incômodo, prefiro vaporizado), nada de açúcar ou adoçante (café bom e leite bom não precisam ser adoçados), e servidos no copo americano (cheio só até a borda inferior). Anotou?” Essa bem humorada paródia da famosa música de Noel Rosa e Vadico (“Conversa de Botequim”), estampou a primeira página do caderno Paladar do Estadão (27 de maio a 02 de junho de 2010), por causa da idéia do lançamento do Movimento de Valorização do Pingado (MVP), o que inclui até mesmo a instituição do Dia Nacional do Pingado, que será todo 25 de Maio. Já existe o Dia Nacional do Café, que é em 24 de Maio. Logo, é natural que o dia seguinte seja o Dia Nacional do Pingado. Elementar, meu caro Watson! E falemos de café: completamente obtuso em questões e lides gastronômicas e afins, passei a me interessar pelo café depois de ganhar uma cafeteira da minha cara-metade no último Natal. Pouco meticuloso, como sempre, me atentei para as recomendações do manual, e aí passei a fazer uma peregrinação pela internet, buscando cursos de conhecimentos básicos. Mas a maioria que encontrei era mais voltada para formação de baristas (profissional que prepara e serve cafés), o que não me servia. Acabei encontrando um curso chamado de Curso de Preparação de Café feito em Casa, ministrado pelo Centro de Preparação de Café, do Sindicato da Indústria de Café de São Paulo (Sindicafé). Apesar de ter a duração de apenas uma tarde, achei o curso bem interessante. A primeira parte foi teoria, quando aprendi sobre os tipos de grãos (robusta e arábica), a origem histórica, as regiões de plantação no Brasil, os principais plantadores no mundo, os graus de defeitos, métodos de secagem e torrefação, e por aí vai. A segunda parte foi prática: nos reunimos em torno de uma pequena bancada, onde a professora preparou e serviu café das mais diversas formas – coador, prensa francesa, italiano, máquinas manuais e automáticas, Nespresso, café turco. Todos não adoçados, à exceção do café turco, ao qual foi acrescentado um pouco de açúcar mascavo (além de um toque perfumado de grãos de cardamomo). Café turco, para aqueles que não conhecem, é aquele famoso por duas características principais: não é coado e, ao final, a xícara é virada para se “ler” o futuro na borra do café. Cada tipo de preparação exige um grau diferente de moagem, desde o café mais fino (para o café turco) até o mais grosso (para a prensa francesa), passando pelo médio (espresso). Um conceito interessante que o curso passou foi o de que não existe a melhor ou pior forma de se preparar um café. Somos nós que precisamos avaliar as diversas formas até encontrar aquela que mais agrade ao nosso paladar. Isso vale também para o pó de café (marcas, origens geográficas, etc.). Algumas dicas:
1. O café coado no coador de pano é tão bom como qualquer outro. Mas exige um cuidado extra: não utilizar produtos químicos para lavar o coador e, para guardar, colocar em um recipiente com água na geladeira (na hora de usar novamente, passar na água quente).
2. Não preparar o café junto com açúcar. O café tem doçura natural. É melhor acrescentar o açúcar (ou adoçante) depois, na hora de servir, de acordo com o gosto de cada um. O melhor mesmo é não adoçar, para poder sentir o real sabor do café.
3. Não colocar café adoçado em garrafa térmica. O açúcar vai formar uma camada na parede interna da garrafa, como um caramelo, prejudicando o sabor.
4. Não deixar mais do que uns 40 minutos o café em garrafa térmica. Depois disso o sabor vai para o espaço sideral.
5. Não deixar a água ferver ao preparar o café. Quando aparecerem fios de bolhas verticais a partir do fundo da caneca, é hora de parar de aquecer a água.
6. Não mexer o pó com colher enquanto a água quente é derramada no coador. É melhor movimentar a caneca, de maneira a fazer com que a água caia sobre toda a superfície do pó no coador.
7. O leite a ser utilizado para preparar a crema deve ser integral (por causa da gordura). Crema é aquela espuma de leite, que pode ser obtida tanto pela vaporização (recurso das máquinas de espresso), quanto em cremeiras manuais.
8. O capuccino tradicional tem um terço de café (espresso), um terço de leite e um terço de crema.
9. O pó de café pode ser tradicional (pelo menos 70% de café arábica), superior (90% de café arábica) ou gourmet (100% de arábica). O café robusta é um café de qualidade inferior, por isso quanto menos, melhor. As boas marcas estampam esses percentuais.
10. Os cafés forte e extra-forte resultam de uma torra feita além da medida, para disfarçar defeitos nos grãos.
11. As melhores embalagens são aquelas embaladas à vácuo e as valvuladas (embalagem aluminizada, com uma pequena válvula na parte superior, onde se pode sentir o cheiro do pó de café).
12. O pó de café deve ser guardado na própria embalagem, ou em recipiente de vidro ou louça. Jamais em plástico, porque contamina o sabor. Na época de calor, o melhor, para manter a qualidade, é guardar em geladeira.
13. Embalagem de pó de café nunca deve ser guardada aberta, porque o pó tem a característica de absorver os cheiros do ambiente.
Só para encerrar: o café Kopi Luwak é, provavelmente, o mais caro – e um dos mais raros - do mundo. Chega a custar US$ 1,200/kg, e a produção anual não passa de 300 kgs. É um café das ilhas de Java e Sumatra, na Indonésia. Um mamífero da família do gambá, a civeta, come a fruta do café, não digere os grãos e aí os excreta (para dizer um termo bonitinho). As enzimas do seu sistema digestivo reduzem a acidez do café e aprimoram o sabor. Aí esses grãos são higienizados (assim esperamos!), dando origem a esse café absolutamente extravagante. Um cafezinho Kopi Luwak simples custa entre R$ 30,00 e R$ 40,00 a xícara (pequena!). Gosto (e bolso) não se discute! Nos falamos.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 04

“Digressão! Digressão!”

Holden Caulfield é, provavelmente, um dos personagens mais conhecidos de todos os tempos, dentro do (extremamente) fértil campo da literatura de ficção. Apesar de estar preso em uma história geograficamente fixa e datada (Nova Iorque, meados do século XX – o livro foi publicado inicialmente em 1951), a forma magistral como seu comportamento e seus sentimentos são expostos compõem um painel psicológico cativante, que tem angariado leitores entusiasmados por décadas seguidas. É impressionante como o livro “O apanhador no campo de centeio”, de autoria de J. D. Salinger (que morreu em Janeiro deste ano, aos 91 anos de idade), onde reina o famoso personagem, consegue prender nossa atenção e ao mesmo tempo consegue verter de maneira avassaladora as confusões intermináveis de uma mente adolescente em ebulição. Como Salinger optou por uma vida absolutamente reclusa, avesso a qualquer forma de exposição pública, e como ele escreveu relativamente muito pouco (além de “O apanhador”, o livro de contos “Nove histórias”, duas novelas curtas em “Franny e Zooey”, e o romance “Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira e Seymour, uma apresentação”), nunca saberemos efetivamente quanto de si próprio havia nos personagens que criava, ou quanto do que ele acreditava era dito por seus personagens (que, aliás, não foram muitos, já que ele repetia personagens e famílias de um livro para o outro). Um episódio interessante do livro ocorre quando Holden conta sobre um método da aula de Inglês em sua escola, em que o aluno é obrigado a fazer uma redação oral, diante de todo o resto da classe, não podendo perder o fio da meada do que narra, sob o perigo constante de todos os outros alunos começarem a gritar “Digressão! Digressão!”. No Dicionário da Editora Rideel “digressão” é: s.f. 1 Divagação. 2 Desvio de assunto, de rumo; passeio; excursão. 3 Evasiva. E Holden não se conforma com essa regra, porque acha que, se no meio de uma história, o autor acha por bem mudar o fio narrativo, porque outro assunto mais interessante se apresentou, então ele, o autor, que siga por onde quiser, sem que fiquem gritando “Digressão! Digressão!” a cada vez que ele deixa a mente divagar. Eu, particularmente, gosto de “tergiversar” (fazer rodeios, ser evasivo). Quantas vezes preciso parar um bate papo para perguntar, espantado com o rumo da prosa, sobre como aquilo tudo começou (brincadeira recorrente: você quer saber tudo desde o começo? Pois bem, no começo o mundo era uma bola de fogo...). Parece o "efeito borboleta": o início da conversa é sobre, por exemplo, a erupção do vulcão na Islândia, e daí a pouco estamos falando sobre, também por exemplo, a invenção da minissaia pela inglesa Mary Quant. Ou, pior ainda, vice-versa, da minissaia para o vulcão. E, afinal, que mal há nisso? Desde que não prejudique ou inviabilize o convívio social, tanto faz! Aliás, como usei “por exemplo” duas vezes na mesma frase, me lembrei do meu grande amigo Flávio Lanzelotti, que tinha o curioso hábito de enfiar o “por exemplo” no meio de qualquer conversa, mas destituindo a expressão de qualquer vínculo com seu sentido original. “Eu estava parado num congestionamento na Rebouças, por exemplo, e um motoqueiro quase arrancou o espelho retrovisor do meu carro”, ou “Eu nunca fui com a cara desse sujeito aí, por exemplo”. Ele era o Senhor “Por Exemplo”, que desgastou a expressão, de tanto empregá-la a torto e a direita, até que sobrou apenas uma interjeição (ou uma exclamação), pontuando uma frase. E agora estou lembrando que voltei a ler “O apanhador” por causa da leitura recente da (caudalosa) biografia de John Lennon por Philip Norman, e lá consta que o assassino do Beatle, Mark Chapman, estava lendo “O apanhador” por ocasião do assassinato, e ele afirmou para a polícia que a resposta para o seu ato estava no livro. Detalhe: o atirador que tentou matar o presidente norte-americano Ronaldo Reagan, menos de cinco meses depois da morte de Lennon, também afirmou que a resposta para o seu ato estava nesse livro. Livrinho insidioso, pois não? Pois sim é que a mente perturbada acha motivo onde quer. E outra coisa que me lembrei agora: na verdade, fiquei um bom tempo achando que o “apanhador” do título do livro seria equivalente a quem faz a colheita. Afinal, o que é um apanhador num campo de centeio? Isso, claro, antes de ler o livro. Aí se descobre que o “apanhador” tem relação com o baseball (no jogo, o apanhador é quem pega as bolas que escapam ao batsman, usando uma grande luva de couro), porque essa seria a atividade ideal para o Holden Caulfield: num campo de centeio, onde centenas de crianças correm brincando em todas as direções, ele seria o responsável por apanhá-las caso se desgarrassem e fossem cair num precipício. Uma imagem extremamente poética. Na tradução livre, “catcher” pode ser também aquele que pega ou apanha coisas. E também pensei: uma pessoa que apanha regularmente (no sentido de levar uma surra), também é um apanhador? E por aí vai! Nos falamos.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 03

CONTO

Ele sempre foi um sujeito enviesado, mas nunca, até então, se dera conta de ser – finalmente - alguém com o perfil na moda, pelo menos no que tange à palavra que descreve tão bem seu comportamento. Só teve essa noção depois de ler algumas notícias sobre diversas aplicações de “viés”. Por exemplo: “O Copom (Comitê de Política Monetária) manteve a taxa Selic em 8,75% ao ano, mas com viés de alta, em função da iminência da alta da inflação”. Ou “O diretor de teatro Antunes Filho, do alto dos seus oitenta anos de vida, continua sendo visceral em seus trabalhos nos palcos, mantendo sempre um viés interpretativo sui generis, calcado tanto na sua vasta experiência quanto no seu espírito inovador e irrequieto”.

No dicionário da Editora Rideel, viés é: s.m. 1. Obliqüidade, direção oblíqua; esguelha. 2. Tira estreita de pano, cortada no sentido diagonal da peça, dobrada e cosida longitudinalmente, e que serve para enfeite de certos trajes femininos. 3. Ao viés ou de viés: obliquamente; em diagonal; de esguelha.

Hoje, no entanto, o sentido se aproxima mais de “tendência”, que é a aplicação usual em estatística (onde também pode significar erro sistemático, o que é sintomático). Isso foi o que ele apurou (e mais um tanto, que aqui não cabe relatar, porque não tem importância), quando percebeu seu enviesamento na vida. Afinal, quem seria mais oblíquo do que ele próprio? E “viés”, decididamente, está na moda! Não havia como se desvencilhar dessa característica tão sua. E ele que sempre se ativera ao significado singelo da “tira estreita de pano, etc.”, ficou maravilhado com essa aplicação da palavra, e por entender que era, afinal, descrito sucintamente, mas por inteiro. Capitu não tinha, afinal, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (nos dizeres eternos de Bentinho, o Dom Casmurro)? Então ele deduziu que ela era enviesada, como ele sempre fora. E gostou da identificação, porque ele sempre carregou a pecha de dissimulado, o peso de ter um semblante oblíquo, um meio sorriso, um olhar de esguelha, diagonal, que tangencia o objeto em vez de encarar. E ali ele se achou, na palavra curta, mas definitiva, catada na barafunda desse idioma prolixo. Colheu a palavra e colocou-a na lapela do paletó, como se grudasse um raminho da azulada flor de bela-emília, à guisa de um broche vivo, como nos dominicais footings das praças interioranas de antigamente. Atravessou a Avenida Paulista nas duas direções, andando pausadamente, com circunspecção, como cabe a uma pessoa que descobre, enfim, quem é. Desceu a Avenida Brigadeiro Luiz Antonio até chegar à Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde se preocupou em mirar-se nas vitrines das lojas próximas, para ver, discretamente, se seu ornamento continuava pousado incólume na lapela do paletó. Em frente à uma loja de produtos medicinais (muletas, cadeiras higiênicas, sapatos para diabéticos, ataduras, gazes) ficou em dúvida. “Soslaio” também o descreveria? Gostaria muito que sim. Se pudesse, acrescentaria “soslaio” ao próprio sobrenome. Poderia se apresentar afavelmente como “Fulano Soslaio de tal”. E poderia ser chamado pelo sobrenome incomum: “Você viu se o Soslaio já está na empresa?” ou “O Sr. Soslaio aguarda o senhor na sala de reuniões da diretoria”. “Esguelha” não lhe cabia bem, porque não tem um som fleumático, mais parecendo um apelido de delinqüente. “O perigoso Sr. Soslaio, também alcunhado como Esguelha, foi visto rondando a cena do crime na última sexta-feira, dia 13”. Mas gostou muito de “viés”, porque sempre se soube, apesar de nunca ter consciência plena, um ser enviesado, atravessado, oblíquo. Sempre se comportou dessa forma, ao escutar, ao falar, ao andar, ao compreender e ao se fazer entender. Andava sempre em linha reta, mas no seu caminho sempre se chocava com as outras pessoas, porque ele estava em diagonal em relação ao caminho dos outros. Sua vida era cheia de esbarrões, tanto físicos, quanto imateriais. Ao se saber enviesado não achou a solução para suas atribulações, mas se descobriu, e isso era o mais importante de tudo. Afinal, que importam os percalços do caminho quando estamos no rumo certo?

Nos falamos.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 02

A lâmpada do farol baixo, do lado direito do meu carro, queimou. Uma situação deverasmente prosaica, como diria o personagem Odorico Paraguaçu, o bem-amado, personagem este tão bem elaborado pelas mãos hábeis de Dias Gomes, que permanece até os dias de hoje atualíssimo. Mas isso é outra história. Eu falava da lâmpada queimada. E pensei, cá com meus botões, que uma situação prosaica requer uma decisão trivial. Ou seja, para quê levar em uma oficina de auto-elétrico para um trabalho tão simples? Ainda mais porque no ano passado a lâmpada do farol do lado esquerdo também havia queimado, e eu cometi a leviandade de procurar o Sr. Manga, denodado especialista nas lides elétrico-automotivas do pujante bairro de Piraporinha, em Diadema, para fazer esse reparo tão... hã... prosaico. Observei, naquela oportunidade, os gestos distraídos do mecânico/eletricista enquanto ele soltava uma trava metálica, depois soltava a tampa plástica, depois puxou a lâmpada falecida, e depois após depois, em questão de segundos, substituiu a lâmpada velha pela nova. Dei dez reais pelo serviço (fora o custo da lâmpada) com um vago peso na consciência, e um sentimento incomodante de desperdício. Afinal, um trabalho tão simplório, feito de uma forma tão – digamos – mecânica, sequer merecia um pagamento? Isso me ocorreu ontem, enquanto comprava uma lâmpada nova em uma loja de autopeças em Diadema. O atendente da loja ainda teve tempo de me prevenir quanto ao uso de lâmpadas chinesas. Um infortúnio para os incautos, foi o que ele disse. Não com essas palavras, mas foi o que ele disse. Amém, foi o que eu disse, mas também não com essas palavras. E fui embora com a minha compra, sobranceiro como sói acontecer a seres esclarecidos como eu. Mas choveu o resto da tarde (comprei a lâmpada na hora do almoço), e eu não tive a oportunidade de testar minhas habilidades elétrico-mecânicas na troca das lâmpadas. À noite, no entanto, a hora chegou. Desci do apartamento para a garagem, abri o capô dianteiro e olhei atentamente, com meu melhor olhar técnico/mecânico/elétrico. Estava um pouco escuro, por isso - não contavam com a minha astúcia! – manobrei o carro para ficar ao contrário na vaga, maldizendo a falta da direção hidráulica. Capô aberto, com duas pequenas lâmpadas fluorescentes logo acima, percebi que continuava escuro como antes, não colaborando, em absoluto, o fato de as peças e partes do motor e adjacências serem todas da cor preta. Logo vi a haste metálica, primeiro obstáculo para o acesso à lâmpada. Testei: firme como uma rocha. Subi ao apartamento e voltei com duas chaves de fenda e um pequeno alicate. Só com a ajuda de uma das chaves de fenda, a maiorzinha, retirei facilmente a haste metálica, no mesmo instante em que um diabinho soprou no meu ouvido: você vai conseguir colocar isso de volta? Tem certeza? Mas não me abati. Apenas tomei o cuidado de não perder a peça. Agora bastava puxar a tampa de plástico, o que acabou se revelando uma tarefa um pouco pior do que eu pensava, porque o espaço para movimentação não era dos melhores, principalmente pela proximidade da peça onde fica o filtro de ar do motor. De maneira que a mão mal se movimentava, e eu não enxergava o que estava fazendo. Depois de alguns xingamentos, a peça cedeu e abriu como uma porta, ou seja, como se tivesse uma dobradiça na outra extremidade. Mas não saiu do lugar, apesar de balançada já com um pouco de raiva por várias vezes. Com a tampa aberta, o espaço para alcançar a lâmpada não era dos melhores, e eu não conseguia enxergar direito por causa da escuridão. Logo as minhas mãos estavam sujas e eu me lembrei que não poderia relaxar com a sujeira, porque não tinha trocado de roupa, ainda estando vestido com calça e camisa sociais. Deslocar a lâmpada do seu habitat natural, depois de descobrir duas travinhas metálicas, e torcer e distorcer até machucar as mãos (uma de cada vez, porque ambas não cabiam no espaço exíguo), foi um trabalho longo e penoso, ao fim do qual percebi que ficar debruçado sobre o motor estava proporcionando uma dor pra lá de razoável nas costas. Legal para quem, como eu, tem escoliose, lordose, hérnia de disco e bico de papagaio. Quando consegui finalmente retirar a lâmpada do lugar (mentalmente usando um fabuloso argumento escutado inúmeras vezes da boca do meu pai: essa lâmpada não nasceu aí!), e me reergui para buscar uma flanela no interior do carro, senti como se a minha coluna tivesse sido deslocada num torno, de maneira que andei um pouco claudicante, fulminado pela certeza que não conseguiria dar cabo de uma tarefa tão – bem – trivial. Mas resisti à tentação de desistir e segui em frente. Não sei como consegui soltar a lâmpada queimada (tirar o encaixe elétrico me reportou ao dístico no Inferno de Dante: deixai aqui as esperanças, ó vós que entrais!), nem como, por milagre divino, encaixei a lâmpada nova no lugar. Então, altamente receoso, acendi o farol e – voilá! – fez-se luz nas trevas do segundo subsolo. Muito bem: era só colocar a tampa plástica no lugar e encaixar a haste metálica. Por baixo: vinte minutos para essa façanha. Primeiro a tampa saiu inteira na minha mão: não havia fixação na outra ponta, era apenas encaixada. A coisa toda poderia ter sido mais fácil desde o início. Depois a haste se recusou a voltar para o seu lugar de origem, apesar dos meus mais intrépidos esforços. Quando ouvi o clic da haste se encaixando finalmente, faltou pouco para que eu me ajoelhasse naquele piso sagrado e agradecesse a Deus pela graça alcançada. Olhei a minha obra e relutantemente concluí que talvez a fixação geral não estivesse lá essas coisas. Talvez precisasse pedir ao Sr. Manga, assim que possível, uma revisão dos meus serviços, ao custo de uns míseros dez reais. Isso posto, subi para o apartamento, com dores nas costas, pernas, braços e mãos, mas com o orgulho razoavelmente intacto. Mais tarde, banho tomado, de pijama e chinelinho, vi uma parte do programa “Bem, amigos”, do SporTV, comandado pelo onipotente Galvão Bueno, e assisti a um rebolado tímido e desastroso do ex-jogador (e atual comentarista de futebol) Caio, que, cedendo aos apelos do time do Santos, que estava em peso no programa, dançou o Rebolation. Ao ver aqueles movimentos corporais ridículos senti uma epifania, e uma luz se acendeu no meu cérebro. O negócio do Caio é jogar bola e comentar, não dançar. Assim como meu negócio é escrever e fazer contas. Nada de mecânica ou elétrica de autos. Cada um no seu quadrado. Valha-me Deus, nosso Senhor: isso é que é realmente o reboleichom-chom. Nos falamos.

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 01

Um grande amigo meu partiu para o infinito. “Partiu fora do combinado”, como diz o Rolando Boldrin no seu programa na TV Cultura. E eu fiquei órfão de uma amizade sincera, correta, honesta e calorosa. Engraçado é que éramos muito amigos, mas paradoxalmente não éramos muito próximos. Nunca fui a casa dele e ele também nunca foi na minha. Almoçamos juntos algumas vezes e nos vimos várias vezes aos sábados pela manhã (na época em que tínhamos participações em estacionamentos na região da Pompéia, aqui em São Paulo), além, é claro, de nos falarmos regularmente toda semana. Em comum tínhamos duas curiosidades: ambos sem filhos, e esposas com o mesmo nome. Flávio Lanzelotti tinha um jeito tão calmo, terno e fraterno que eu dizia que ele viveria 100 anos, tranquilamente. Tipo de certeza que o destino teima em contrariar. Pelo menos perto de mim ele era um sujeito zen, que não se exaltava à toa, não criticava os outros, não falava mal de quem quer que fosse. Certamente devia ter seus problemas (quem não os tem?), mas nunca o vi se queixando ou maldizendo alguma situação adversa. Era sócio de uma agência franqueada dos Correios, e, portanto, estava envolvido atualmente em uma confusão dos diabos, porque havia um ameaça, cada vez mais forte, de perder o direito a essa franquia, por problemas de origem do negócio (acho que não houve inicialmente concorrência pública para a obtenção dessas franquias, o que configura uma situação irregular em se tratando da coisa pública). Ele me relatava os problemas, mas sem qualquer tipo de raiva ou rancor. Eu o chamava de “magnata”, “prefeito de Jandira” (cidade onde ele residia), falava maldosamente do condomínio Forest Hill (onde ficava sua casa), e ele ria seu riso manso, cordato, amigo. Me chamava de “garoto”, apesar de a nossa diferença de idade não ser assim tão significativa (tenho 52 e ele já passava dos 60, mas eu nunca soube da sua idade exata). No dia 15 de março último, enquanto eu comemorava o aniversário de meio século do meu cunhado mais próximo (Toni), Flávio foi jogar bola com os amigos, o que sempre fazia às segundas-feiras. No meio do jogo teve um infarto fulminante e não resistiu. Um sujeito faixa-preta de judô (foi professor por um bom tempo), jogador de futebol (ainda que só uma vez por semana), sempre em boa forma física, que me contava “puxar ferro” em casa, sofrer um colapso desses... Vá entender! Só sei que fiquei muito abalado, pelo vínculo que tínhamos (ainda que um vínculo recente, já que nos aproximamos mais a partir do último ano em que trabalhei na corretora de seguros Marraf, em 2007, apesar de já nos conhecermos por um bom tempo antes disso), pela sintonia em alguns gostos compartilhados e pelo carinho espontâneo de irmão que brotara entre nós. Ficam na memória:
- As caminhadas que fazíamos nas manhãs ensolaradas, pelo bairro da Pompéia, falando de tudo um pouco, às vezes parando para tomar um cafezinho, em cafeterias, bares e padarias. Ele gostava de ir também em mercearias, mercados, lojas de roupas, só para ver os preços, fazer comparações. Lembro de um dia em que ele comprou uns óculos de leitura num camelô, que pouco tempo depois praticamente se desintegrou. Gostava de conversar com todo mundo que encontrava. Parecia um vereador quando andávamos pelo Campo Belo, nas imediações da agência do Correio, cumprimentando e sendo cumprimentado por todo mundo que encontrava pelo caminho.
- Sua mania de parar, enquanto andávamos, para ressaltar algum ponto da conversa. Às vezes mal dávamos dez passos, e ele parava novamente, de maneira que percorrer um quarteirão podia ser uma coisa beeeeeem demorada.
- Sua predileção pela Fanta laranja, que eu achava estranha, meio fora de moda. Uma vez ele me convidou para uma rodada de pizza e chopp depois do expediente, e no restaurante, enquanto eu pedi um chopp (correspondendo à expectativa do convite), ele pediu a tal Fanta laranja. Todo almoço que compartilhamos era regado por esse refrigerante.
- Seu gosto por carros esportivos. Além de um Mitsubishi Eclipse, tinha um 3000GT VR4 (este adquirido mais recentemente), e seu xodó: um Puma GTB branco do início da década de 1980 (motor de Opala!), que ele estava reformando inteiramente. Há pouco tempo ele me falou da escolha do couro para os bancos e forração das portas (uma cor de bebida: não sei se era whisky ou conhaque). Estávamos combinando de irmos juntos, num sábado pela manhã, para ver o estágio atual da reforma. Na última vez em que quase acertamos isso, ele precisava ir a um casamento, o que gorou nossas pretensões. Agora, o carro não faz mais sentido.
- Seu gosto pelo jogo: jogava religiosamente todo dia no jogo do bicho (se estava longe da “banca”, telefonava para lá e fazia sua fezinha, sempre baseando-se em palpites, sonhos, placas de carros), e também nos jogos da Caixa Econômica (sena, megasena, etc).
- Eu achava engraçada a gorda carteira que ele carregava, quase uma reencarnação daquelas “capangas” de antigamente, repleta de papéis e documentos; e também a sua “agenda de telefones”: um papel maltratado, amarelecido, inúmeras vezes dobrado e desdobrado, com os nomes e números escritos, que ele consultava diligentemente. Agenda eletrônica? Nem pensar!
- O carinho que ele tinha pela mãe, que faleceu no ano passado, prestes a completar 100 anos de vida, e com quem ele viveu até casar, meio tardiamente, lá pelos 45 anos.
É claro que há muito mais coisas, acontecimentos, detalhes e curiosidades, que ficarão para sempre na minha memória, relacionadas com o Flávio. Para mim foi um golpe muito duro perdê-lo. Só o que posso fazer agora é curtir essa dor e lamentar a interrupção abrupta dessa nossa amizade fantástica. Para driblar a tristeza e, ao mesmo tempo, brincar com esses contratempos imutáveis da vida, mudei o toque da campainha do meu celular para a música “Tudo vira bosta”, cantada pela Rita Lee (de autoria do Moacir Franco!). É o velho jeito de zombar da própria dor, fingindo ignorá-la. Nos falamos.