quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Artigo Indefinido – Ano 1 – Nº 50

Acabei de ler dois livros que me impressionaram significativamente. O primeiro foi “Indignação”, de autoria do norte-americano Phillip Roth (Editora Cia das Letras), e o outro foi “Fome”, do norueguês Knut Hamsun (Geração Editorial). “Indignação” narra a história de um jovem judeu, nos Estados Unidos do começo da década de 1950, quando o país estava envolvido na Guerra das Coréias (a parte norte do país apoiada por países comunistas como China e Rússia – esta última na época ainda configurada como a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou URSS – e a parte sul apoiada pelos Estados Unidos), dando os primeiros passos para os movimentos liberalizantes que começariam a se estabelecer em sua cultura, principalmente a partir do meio daquela década (o surgimento do rock’n’roll, das pílulas anticoncepcionais, os experimentos literários da geração beat, as raízes do movimento hippie, do flower power, a contestação generalizada do establishment, a iconoclastia, a luta pela emancipação dos negros, os princípios do feminismo, e por aí vai). Ou seja, aquele começo de década, que ainda reverberava os últimos sinais da monstruosa Segunda Grande Guerra Mundial (que terminou em 1945), ainda era um campo aberto e virgem, sem que se tivesse a noção exata da magnitude dos movimentos sociais que brotariam dali para frente. E é nesse contexto, ainda predominantemente conservador, que o personagem principal do livro está, em 1951, ingressando na idade adulta. Phillip Roth sem dúvida está entre os grandes escritores norte-americanos da atualidade, junto com John Updike (que morreu neste ano), Paul Auster e alguns outros do mesmo quilate. Ele tem uma destreza impressionante para nos envolver em uma história que, à primeira vista, parece simples e frugal, mas que com a sua visão aguda e certeira acaba por trazer à tona sensações ocultas, provocando sentimentos contraditórios, ora de reconhecimento, quando enxergamos a nós mesmos no viés humano dos erros e defeitos expostos pelos personagens, ora de estranhamento, quando percebemos que ele está lançando um foco de luz sobre comportamentos humanos que preferíamos que continuassem escondidos. Não há como não se sentir afetado pela leitura dos seus romances, ou passar incólume pelas reviravoltas nas histórias, ou pela exposição crua do ser humano. Há pouco tempo li dele “Homem comum”, e as mesmas sensações também brotaram dessa leitura. Não é, nem de longe, leitura de entretenimento, de jogos de palavras, de aventura ou suspense (não há nada de errado com essas outras formas literárias, pelo contrário, cada uma guarda sua própria importância). É como quando olhamos para um quadro que deforma o ser humano, realisticamente ou não, até o ponto em que percebemos que nós mesmos estamos ali retratados de uma forma que não gostamos de nos ver. Incomoda, mas isso é bom, porque induz à reflexão. E o outro livro, que li na seqüência, “Fome”, me chamou a atenção por dois motivos: primeiro porque se trata de uma leitura que fiz no fim da minha adolescência, e que me marcou muito na época – fiquei curioso para saber qual o efeito que o mesmo livro teria sobre mim agora (livros e filmes às vezes perdem todo seu encanto com o tempo, não por eles mesmos, mas porque nós mudamos, e a pessoa que somos hoje vê com olhos muito diferentes aquilo que vimos há muito tempo atrás, e a nossa visão é fundamental para compreensão da obra, porque estamos moldados de acordo com o nosso lastro de cultura, que se altera de forma peculiar ao longo do tempo); e segundo porque a tradução foi feita pelo Carlos Drummond de Andrade, de quem eu desconhecia essa faceta de tradutor. E outra coisa, que eu só fiquei sabendo há bem pouco tempo atrás, é o comportamento esdrúxulo do autor. Knut Hamsun nasceu na pobreza em 1859, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1920, flertou com o nazismo, foi preso ao final da Segunda Guerra Mundial, foi dado como louco e acabou morrendo em 1952, aos 92 anos de idade. Ele foi estivador, lenhador, marinheiro, sapateiro, condutor de bonde, jornalista e cuidador de frangos (!). Quando ele se encontrou com Hitler e Josef Goebbels, já tendo ganhado o Prêmio Nobel, ele deu a Goebbels a medalha do prêmio. Mais polêmico e controvertido, impossível. E à despeito desse comportamento estúpido, sua literatura é de primeira grandeza, ombreando com grandes nomes da literatura mundial de todos os tempos. É uma escrita relatora da condição humana, cheia de sangue e tormento. Como, aliás, só os grandes escritores têm condições de produzir. E eu me senti da mesma maneira hoje como da primeira vez que li esse livro, há mais de trinta anos atrás: satisfeito e inquieto. Literatura de primeira qualidade é isso aí. Nos falamos.

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