sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 07

CONTO

Aventuras e Desventuras de um Sujeito Enviesado nas Laboriosas Terras Tupiniquins

O Sujeito Enviesado conseguiu um novo emprego, após uma temporada desastrosa de penúria e desencanto pela vida, e foi trabalhar normalmente, se é que se poderia chamar de normal o seu comportamento enviesado. De fato, foi um choque saber que tinha sido aceito por aquela empresa de renome internacional, de grande porte, de diretores que posavam impassíveis para fotografias glamurosas que saíam em revistas versadas em negócios. Quando esteve frente a frente com a moça do RH, que lhe passou os detalhes burocráticos sobre o novo emprego, o Sujeito Enviesado esteve mesmo a ponto de ingenuamente perguntar: “Por que vocês me contrataram?” Afinal, ele tinha fundamentadas dúvidas se contratariam alguém como ele para alguma coisa séria na vida. Mas o fato é que foi contratado e precisava tomar as providências cabíveis para se enquadrar no molde exato do cargo. Lembrou do dia em que foi preencher o formulário de solicitação de emprego (tinha uma desconfiança incontornável quanto ao emprego da tecnologia de comunicação, por isso não usava internet, nem tinha celular). Os funcionários do Departamento de Recrutamento e Seleção da empresa o orientaram para que usasse a internet para esse fim, mas ele se recusou terminantemente. Brandiu com razoável articulação alguns argumentos vagos sobre discriminação, até que os funcionários resgataram, mal-humorados, um formulário desgastado em alguma gaveta perdida, e pediram para que ele preenchesse. Houve outros pequenos entreveros, já que ele se complicou em itens prosaicos como “religião”. Ao indagar a um funcionário sobre o que a empresa entendia por “religião”, foi aconselhado a deixar esse campo do formulário em branco, porque se tratava de uma pergunta antiga, típica do formulário antigo. Ao se levantar pela terceira vez para tirar outra dúvida, ouviu em alto e bom som que bastava preencher os campos dos quais tinha certeza quanto ao preenchimento. O tom de voz não deixava margem para discussões, de maneira que foi assim que ele procedeu. E acabou empregado, para espanto dele próprio. Assumiu, então, seu posto numa baia impessoal, onde se isolou no meio de um monte de gente, fazendo um serviço que não compreendia bem, já que não tinha idéia de como aquilo se encaixava no todo da corporação. Quinze dias se passaram até que foi chamado para uma reunião com a chefia, na qual brotou o seguinte diálogo:
- Gostaria que o senhor esclarecesse porque está descendo com outros funcionários para o térreo do prédio, quando estes vão fumar, se o senhor não fuma?
- Nada demais – respondeu o Sujeito Enviesado. Percebi que os fumantes descem regularmente até o térreo para fumar, dando vazão a um vício que não conseguem controlar. Não acho que esta empresa privilegie de alguma forma um funcionário em detrimento de outro. Por isso, constatando que meu grande vício é ler, e que isso não deveria ocorrer no meu posto de serviço, desço com os fumantes para poder ler em paz. Claro que fico chateado com essa situação, assim como imagino que os fumantes também ficam, porque os não viciados não podem largar o serviço com tanta freqüência como nós – os viciados – fazemos, mas o vício cobra sua urgência, de maneira que não temos opção.
- Entendo – disse o chefe, mas o seu semblante desmentia sua afirmação.
O chefe teve de se aconselhar com seu próprio chefe, o qual apenas fingiu escutar, sem realmente estar ouvindo aquela bobagem, orgulhoso que era de ter um ouvido seletivo, que automaticamente descartava assuntos desinteressantes. Além disso, o chefe do chefe ficou o tempo todo da reunião checando mensagens, torpedos e notícias no seu iPhone geração 3 (enquanto pensava quando é que trocaria pelo da geração 4, assunto que trataria na seqüência, assim que seu subordinado saísse da sala), de maneira que houve um certo grau de dificuldade nos trâmites da comunicação naquela reunião. Ao fim, o chefe do Sujeito Enviesado, desanimado, perguntou o que deveria fazer com aquele funcionário esquisito, promovê-lo? O chefe do chefe, profundamente absorto consigo mesmo e ignorando a ironia da pergunta, apenas balançou afirmativamente a cabeça, enquanto sua mão já pousava sobre o telefone na mesa para ligar para a secretária, pois urgia tratar da troca do seu aparelho celular, que já estava inapelavelmente ficando obsoleto a olhos vistos, gestual que foi interpretado como ‘concordo e reunião encerrada’. E assim o Sujeito Enviesado acabou sendo promovido com pouco tempo de casa, o que o chateou sobremaneira, porque não era justo. Como ele relutasse um pouco com a situação inusitada, houve outro ruído na comunicação, já que seu chefe entendeu que a questão era salarial, e assim o salário do Sujeito Enviesado foi aumentado além do que foi proposto inicialmente. Assim não sobrou outra atitude a não ser pedir demissão, o que o Sujeito Enviesado fez assim que pôde, o que voltou a colocar sua vida nos eixos. Eixos enviesados, é claro, mas quem é que pode querer a perfeição nesses tempos malucos de hoje? Nos falamos.

Um comentário:

  1. Fiquei feliz em achar o email que tinha o link desta crônica perdido na minha caixa de entrada e poder lê-la hoje. Como não tenho um i-phone geração 4 (nem nenhum outro), meus emails não andam assim tão organizados. Animou minha tarde de sábado de estudos saber que há mais gente esquisita no mundo do que posso imaginar. :)

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