quarta-feira, 7 de abril de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 01

Um grande amigo meu partiu para o infinito. “Partiu fora do combinado”, como diz o Rolando Boldrin no seu programa na TV Cultura. E eu fiquei órfão de uma amizade sincera, correta, honesta e calorosa. Engraçado é que éramos muito amigos, mas paradoxalmente não éramos muito próximos. Nunca fui a casa dele e ele também nunca foi na minha. Almoçamos juntos algumas vezes e nos vimos várias vezes aos sábados pela manhã (na época em que tínhamos participações em estacionamentos na região da Pompéia, aqui em São Paulo), além, é claro, de nos falarmos regularmente toda semana. Em comum tínhamos duas curiosidades: ambos sem filhos, e esposas com o mesmo nome. Flávio Lanzelotti tinha um jeito tão calmo, terno e fraterno que eu dizia que ele viveria 100 anos, tranquilamente. Tipo de certeza que o destino teima em contrariar. Pelo menos perto de mim ele era um sujeito zen, que não se exaltava à toa, não criticava os outros, não falava mal de quem quer que fosse. Certamente devia ter seus problemas (quem não os tem?), mas nunca o vi se queixando ou maldizendo alguma situação adversa. Era sócio de uma agência franqueada dos Correios, e, portanto, estava envolvido atualmente em uma confusão dos diabos, porque havia um ameaça, cada vez mais forte, de perder o direito a essa franquia, por problemas de origem do negócio (acho que não houve inicialmente concorrência pública para a obtenção dessas franquias, o que configura uma situação irregular em se tratando da coisa pública). Ele me relatava os problemas, mas sem qualquer tipo de raiva ou rancor. Eu o chamava de “magnata”, “prefeito de Jandira” (cidade onde ele residia), falava maldosamente do condomínio Forest Hill (onde ficava sua casa), e ele ria seu riso manso, cordato, amigo. Me chamava de “garoto”, apesar de a nossa diferença de idade não ser assim tão significativa (tenho 52 e ele já passava dos 60, mas eu nunca soube da sua idade exata). No dia 15 de março último, enquanto eu comemorava o aniversário de meio século do meu cunhado mais próximo (Toni), Flávio foi jogar bola com os amigos, o que sempre fazia às segundas-feiras. No meio do jogo teve um infarto fulminante e não resistiu. Um sujeito faixa-preta de judô (foi professor por um bom tempo), jogador de futebol (ainda que só uma vez por semana), sempre em boa forma física, que me contava “puxar ferro” em casa, sofrer um colapso desses... Vá entender! Só sei que fiquei muito abalado, pelo vínculo que tínhamos (ainda que um vínculo recente, já que nos aproximamos mais a partir do último ano em que trabalhei na corretora de seguros Marraf, em 2007, apesar de já nos conhecermos por um bom tempo antes disso), pela sintonia em alguns gostos compartilhados e pelo carinho espontâneo de irmão que brotara entre nós. Ficam na memória:
- As caminhadas que fazíamos nas manhãs ensolaradas, pelo bairro da Pompéia, falando de tudo um pouco, às vezes parando para tomar um cafezinho, em cafeterias, bares e padarias. Ele gostava de ir também em mercearias, mercados, lojas de roupas, só para ver os preços, fazer comparações. Lembro de um dia em que ele comprou uns óculos de leitura num camelô, que pouco tempo depois praticamente se desintegrou. Gostava de conversar com todo mundo que encontrava. Parecia um vereador quando andávamos pelo Campo Belo, nas imediações da agência do Correio, cumprimentando e sendo cumprimentado por todo mundo que encontrava pelo caminho.
- Sua mania de parar, enquanto andávamos, para ressaltar algum ponto da conversa. Às vezes mal dávamos dez passos, e ele parava novamente, de maneira que percorrer um quarteirão podia ser uma coisa beeeeeem demorada.
- Sua predileção pela Fanta laranja, que eu achava estranha, meio fora de moda. Uma vez ele me convidou para uma rodada de pizza e chopp depois do expediente, e no restaurante, enquanto eu pedi um chopp (correspondendo à expectativa do convite), ele pediu a tal Fanta laranja. Todo almoço que compartilhamos era regado por esse refrigerante.
- Seu gosto por carros esportivos. Além de um Mitsubishi Eclipse, tinha um 3000GT VR4 (este adquirido mais recentemente), e seu xodó: um Puma GTB branco do início da década de 1980 (motor de Opala!), que ele estava reformando inteiramente. Há pouco tempo ele me falou da escolha do couro para os bancos e forração das portas (uma cor de bebida: não sei se era whisky ou conhaque). Estávamos combinando de irmos juntos, num sábado pela manhã, para ver o estágio atual da reforma. Na última vez em que quase acertamos isso, ele precisava ir a um casamento, o que gorou nossas pretensões. Agora, o carro não faz mais sentido.
- Seu gosto pelo jogo: jogava religiosamente todo dia no jogo do bicho (se estava longe da “banca”, telefonava para lá e fazia sua fezinha, sempre baseando-se em palpites, sonhos, placas de carros), e também nos jogos da Caixa Econômica (sena, megasena, etc).
- Eu achava engraçada a gorda carteira que ele carregava, quase uma reencarnação daquelas “capangas” de antigamente, repleta de papéis e documentos; e também a sua “agenda de telefones”: um papel maltratado, amarelecido, inúmeras vezes dobrado e desdobrado, com os nomes e números escritos, que ele consultava diligentemente. Agenda eletrônica? Nem pensar!
- O carinho que ele tinha pela mãe, que faleceu no ano passado, prestes a completar 100 anos de vida, e com quem ele viveu até casar, meio tardiamente, lá pelos 45 anos.
É claro que há muito mais coisas, acontecimentos, detalhes e curiosidades, que ficarão para sempre na minha memória, relacionadas com o Flávio. Para mim foi um golpe muito duro perdê-lo. Só o que posso fazer agora é curtir essa dor e lamentar a interrupção abrupta dessa nossa amizade fantástica. Para driblar a tristeza e, ao mesmo tempo, brincar com esses contratempos imutáveis da vida, mudei o toque da campainha do meu celular para a música “Tudo vira bosta”, cantada pela Rita Lee (de autoria do Moacir Franco!). É o velho jeito de zombar da própria dor, fingindo ignorá-la. Nos falamos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário