quarta-feira, 7 de abril de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 02

A lâmpada do farol baixo, do lado direito do meu carro, queimou. Uma situação deverasmente prosaica, como diria o personagem Odorico Paraguaçu, o bem-amado, personagem este tão bem elaborado pelas mãos hábeis de Dias Gomes, que permanece até os dias de hoje atualíssimo. Mas isso é outra história. Eu falava da lâmpada queimada. E pensei, cá com meus botões, que uma situação prosaica requer uma decisão trivial. Ou seja, para quê levar em uma oficina de auto-elétrico para um trabalho tão simples? Ainda mais porque no ano passado a lâmpada do farol do lado esquerdo também havia queimado, e eu cometi a leviandade de procurar o Sr. Manga, denodado especialista nas lides elétrico-automotivas do pujante bairro de Piraporinha, em Diadema, para fazer esse reparo tão... hã... prosaico. Observei, naquela oportunidade, os gestos distraídos do mecânico/eletricista enquanto ele soltava uma trava metálica, depois soltava a tampa plástica, depois puxou a lâmpada falecida, e depois após depois, em questão de segundos, substituiu a lâmpada velha pela nova. Dei dez reais pelo serviço (fora o custo da lâmpada) com um vago peso na consciência, e um sentimento incomodante de desperdício. Afinal, um trabalho tão simplório, feito de uma forma tão – digamos – mecânica, sequer merecia um pagamento? Isso me ocorreu ontem, enquanto comprava uma lâmpada nova em uma loja de autopeças em Diadema. O atendente da loja ainda teve tempo de me prevenir quanto ao uso de lâmpadas chinesas. Um infortúnio para os incautos, foi o que ele disse. Não com essas palavras, mas foi o que ele disse. Amém, foi o que eu disse, mas também não com essas palavras. E fui embora com a minha compra, sobranceiro como sói acontecer a seres esclarecidos como eu. Mas choveu o resto da tarde (comprei a lâmpada na hora do almoço), e eu não tive a oportunidade de testar minhas habilidades elétrico-mecânicas na troca das lâmpadas. À noite, no entanto, a hora chegou. Desci do apartamento para a garagem, abri o capô dianteiro e olhei atentamente, com meu melhor olhar técnico/mecânico/elétrico. Estava um pouco escuro, por isso - não contavam com a minha astúcia! – manobrei o carro para ficar ao contrário na vaga, maldizendo a falta da direção hidráulica. Capô aberto, com duas pequenas lâmpadas fluorescentes logo acima, percebi que continuava escuro como antes, não colaborando, em absoluto, o fato de as peças e partes do motor e adjacências serem todas da cor preta. Logo vi a haste metálica, primeiro obstáculo para o acesso à lâmpada. Testei: firme como uma rocha. Subi ao apartamento e voltei com duas chaves de fenda e um pequeno alicate. Só com a ajuda de uma das chaves de fenda, a maiorzinha, retirei facilmente a haste metálica, no mesmo instante em que um diabinho soprou no meu ouvido: você vai conseguir colocar isso de volta? Tem certeza? Mas não me abati. Apenas tomei o cuidado de não perder a peça. Agora bastava puxar a tampa de plástico, o que acabou se revelando uma tarefa um pouco pior do que eu pensava, porque o espaço para movimentação não era dos melhores, principalmente pela proximidade da peça onde fica o filtro de ar do motor. De maneira que a mão mal se movimentava, e eu não enxergava o que estava fazendo. Depois de alguns xingamentos, a peça cedeu e abriu como uma porta, ou seja, como se tivesse uma dobradiça na outra extremidade. Mas não saiu do lugar, apesar de balançada já com um pouco de raiva por várias vezes. Com a tampa aberta, o espaço para alcançar a lâmpada não era dos melhores, e eu não conseguia enxergar direito por causa da escuridão. Logo as minhas mãos estavam sujas e eu me lembrei que não poderia relaxar com a sujeira, porque não tinha trocado de roupa, ainda estando vestido com calça e camisa sociais. Deslocar a lâmpada do seu habitat natural, depois de descobrir duas travinhas metálicas, e torcer e distorcer até machucar as mãos (uma de cada vez, porque ambas não cabiam no espaço exíguo), foi um trabalho longo e penoso, ao fim do qual percebi que ficar debruçado sobre o motor estava proporcionando uma dor pra lá de razoável nas costas. Legal para quem, como eu, tem escoliose, lordose, hérnia de disco e bico de papagaio. Quando consegui finalmente retirar a lâmpada do lugar (mentalmente usando um fabuloso argumento escutado inúmeras vezes da boca do meu pai: essa lâmpada não nasceu aí!), e me reergui para buscar uma flanela no interior do carro, senti como se a minha coluna tivesse sido deslocada num torno, de maneira que andei um pouco claudicante, fulminado pela certeza que não conseguiria dar cabo de uma tarefa tão – bem – trivial. Mas resisti à tentação de desistir e segui em frente. Não sei como consegui soltar a lâmpada queimada (tirar o encaixe elétrico me reportou ao dístico no Inferno de Dante: deixai aqui as esperanças, ó vós que entrais!), nem como, por milagre divino, encaixei a lâmpada nova no lugar. Então, altamente receoso, acendi o farol e – voilá! – fez-se luz nas trevas do segundo subsolo. Muito bem: era só colocar a tampa plástica no lugar e encaixar a haste metálica. Por baixo: vinte minutos para essa façanha. Primeiro a tampa saiu inteira na minha mão: não havia fixação na outra ponta, era apenas encaixada. A coisa toda poderia ter sido mais fácil desde o início. Depois a haste se recusou a voltar para o seu lugar de origem, apesar dos meus mais intrépidos esforços. Quando ouvi o clic da haste se encaixando finalmente, faltou pouco para que eu me ajoelhasse naquele piso sagrado e agradecesse a Deus pela graça alcançada. Olhei a minha obra e relutantemente concluí que talvez a fixação geral não estivesse lá essas coisas. Talvez precisasse pedir ao Sr. Manga, assim que possível, uma revisão dos meus serviços, ao custo de uns míseros dez reais. Isso posto, subi para o apartamento, com dores nas costas, pernas, braços e mãos, mas com o orgulho razoavelmente intacto. Mais tarde, banho tomado, de pijama e chinelinho, vi uma parte do programa “Bem, amigos”, do SporTV, comandado pelo onipotente Galvão Bueno, e assisti a um rebolado tímido e desastroso do ex-jogador (e atual comentarista de futebol) Caio, que, cedendo aos apelos do time do Santos, que estava em peso no programa, dançou o Rebolation. Ao ver aqueles movimentos corporais ridículos senti uma epifania, e uma luz se acendeu no meu cérebro. O negócio do Caio é jogar bola e comentar, não dançar. Assim como meu negócio é escrever e fazer contas. Nada de mecânica ou elétrica de autos. Cada um no seu quadrado. Valha-me Deus, nosso Senhor: isso é que é realmente o reboleichom-chom. Nos falamos.

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