terça-feira, 20 de abril de 2010

Artigo Indefinido – Ano 2 – Nº 03

CONTO

Ele sempre foi um sujeito enviesado, mas nunca, até então, se dera conta de ser – finalmente - alguém com o perfil na moda, pelo menos no que tange à palavra que descreve tão bem seu comportamento. Só teve essa noção depois de ler algumas notícias sobre diversas aplicações de “viés”. Por exemplo: “O Copom (Comitê de Política Monetária) manteve a taxa Selic em 8,75% ao ano, mas com viés de alta, em função da iminência da alta da inflação”. Ou “O diretor de teatro Antunes Filho, do alto dos seus oitenta anos de vida, continua sendo visceral em seus trabalhos nos palcos, mantendo sempre um viés interpretativo sui generis, calcado tanto na sua vasta experiência quanto no seu espírito inovador e irrequieto”.

No dicionário da Editora Rideel, viés é: s.m. 1. Obliqüidade, direção oblíqua; esguelha. 2. Tira estreita de pano, cortada no sentido diagonal da peça, dobrada e cosida longitudinalmente, e que serve para enfeite de certos trajes femininos. 3. Ao viés ou de viés: obliquamente; em diagonal; de esguelha.

Hoje, no entanto, o sentido se aproxima mais de “tendência”, que é a aplicação usual em estatística (onde também pode significar erro sistemático, o que é sintomático). Isso foi o que ele apurou (e mais um tanto, que aqui não cabe relatar, porque não tem importância), quando percebeu seu enviesamento na vida. Afinal, quem seria mais oblíquo do que ele próprio? E “viés”, decididamente, está na moda! Não havia como se desvencilhar dessa característica tão sua. E ele que sempre se ativera ao significado singelo da “tira estreita de pano, etc.”, ficou maravilhado com essa aplicação da palavra, e por entender que era, afinal, descrito sucintamente, mas por inteiro. Capitu não tinha, afinal, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (nos dizeres eternos de Bentinho, o Dom Casmurro)? Então ele deduziu que ela era enviesada, como ele sempre fora. E gostou da identificação, porque ele sempre carregou a pecha de dissimulado, o peso de ter um semblante oblíquo, um meio sorriso, um olhar de esguelha, diagonal, que tangencia o objeto em vez de encarar. E ali ele se achou, na palavra curta, mas definitiva, catada na barafunda desse idioma prolixo. Colheu a palavra e colocou-a na lapela do paletó, como se grudasse um raminho da azulada flor de bela-emília, à guisa de um broche vivo, como nos dominicais footings das praças interioranas de antigamente. Atravessou a Avenida Paulista nas duas direções, andando pausadamente, com circunspecção, como cabe a uma pessoa que descobre, enfim, quem é. Desceu a Avenida Brigadeiro Luiz Antonio até chegar à Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde se preocupou em mirar-se nas vitrines das lojas próximas, para ver, discretamente, se seu ornamento continuava pousado incólume na lapela do paletó. Em frente à uma loja de produtos medicinais (muletas, cadeiras higiênicas, sapatos para diabéticos, ataduras, gazes) ficou em dúvida. “Soslaio” também o descreveria? Gostaria muito que sim. Se pudesse, acrescentaria “soslaio” ao próprio sobrenome. Poderia se apresentar afavelmente como “Fulano Soslaio de tal”. E poderia ser chamado pelo sobrenome incomum: “Você viu se o Soslaio já está na empresa?” ou “O Sr. Soslaio aguarda o senhor na sala de reuniões da diretoria”. “Esguelha” não lhe cabia bem, porque não tem um som fleumático, mais parecendo um apelido de delinqüente. “O perigoso Sr. Soslaio, também alcunhado como Esguelha, foi visto rondando a cena do crime na última sexta-feira, dia 13”. Mas gostou muito de “viés”, porque sempre se soube, apesar de nunca ter consciência plena, um ser enviesado, atravessado, oblíquo. Sempre se comportou dessa forma, ao escutar, ao falar, ao andar, ao compreender e ao se fazer entender. Andava sempre em linha reta, mas no seu caminho sempre se chocava com as outras pessoas, porque ele estava em diagonal em relação ao caminho dos outros. Sua vida era cheia de esbarrões, tanto físicos, quanto imateriais. Ao se saber enviesado não achou a solução para suas atribulações, mas se descobriu, e isso era o mais importante de tudo. Afinal, que importam os percalços do caminho quando estamos no rumo certo?

Nos falamos.

Um comentário:

  1. Muito curioso esse senhor "enviesado". rsrs
    Espero que os contos sobre ele continuem.
    Abraço e que bom que o blog voltou.

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