Sábado de sol em São Paulo. No Parque do Ibirapuera há uma multidão que se esparrama pelas alamedas e pelos gramados, de patins e de skate sob a marquise, de bicicleta ou a pé pelo asfalto, protegidos e desprotegidos, vestidos e desvestidos, fazendo ginástica ou simplesmente caminhando, perdidos e achados, paulistanos de todas as origens, raças, credos, cores e sexos (porque, claro, há muitos!). Depois de trotar por exatos quarenta minutos, vestido a caráter (camiseta regata de tecido que “respira”, shorts curto e folgado, com aberturas nas laterais, tênis – caro – apropriado para corridas, relógio digital com diversos recursos de controle de tempo, etc), um rapaz, qualquer coisa entre vinte e cinco e trinta anos, magro, um princípio de calvície se revelando após uma testa comprida, se aproxima de um dos totens que asperge um vapor de água fresquinho (para atenuar o calor) e espera, um pouco impacientemente, pela sua vez de se refrescar. Depois, caminha lentamente por um gramado e se aproxima de uma sombra de árvore, onde próximo estão algumas instalações para ginástica. Maquinalmente ele passa a fazer alongamento, sem prestar atenção no intenso movimento que o rodeia. Quando encerra a série de alongamentos dá uma olhada no relógio, para conferir os tempos registrados, e senta na sombra da árvore, próximo de uma moça, de idade semelhante à sua. Ela lê um livro de capa branca, de vez em quando empurrando para cima, com o dedo indicador, os óculos que teimam em deslizar pelo nariz. Ao seu lado, sobre a toalha de praia (vivamente colorida) em que ela está sentada, há uma caixa de lenços de papel, da qual ela se serve seguidas vezes, assoando furiosamente o nariz. Ela está vestida bem à vontade, de bermuda, camiseta regata e chinelos, sem nada que evidencie esportividade. Em meio à balbúrdia reinante, de repente ela levanta o rosto, olha para frente e pergunta, como quê para ninguém:
- O que é charneca?
- Acho que é um tipo de pântano – responde o rapaz, sem que um sequer tenha olhado para o outro – Meu tempo não foi bom – ele acrescenta – na segunda volta havia um bando de bananas que atrapalhou um pouco.
- Gozado. Charneca me lembra paisagem de livro inglês. Livros sobre crimes indecifráveis, de detetives como Sherlock Holmes. O fog sobre a charneca, um cão uivando, uma noite fria e úmida...
- Gozado – ele repete, sem querer – esses tênis deveriam ter outro tipo de solado, porque achei muito macio. São leves, não dá para negar. Mas acho que amortecem muito o impacto das passadas. Depois de um tempo dá canseira, como correr sobre areia fofa.
- Como se chamava o autor desses livros de detetive? Conan Doyle? Tinha aquele Ian Flemming. Ou eu estou confundindo? O inspetor Poirot eu lembro que era da Agatha Crhistie. Mas ela escreveu também sobre uma velhinha que desvendava mistérios. Como era o nome da velhinha?
- Na segunda volta, quando aqueles bananas me atrapalharam, devo ter perdido bem uns dois minutos no tempo total. Não gosto quando isso acontece. Ibirapuera de sábado me enche o saco!
- Fico sempre pensando como funciona a cabeça desses autores de livros de suspense. Será que eles fazem um planejamento prévio, um esqueleto de roteiro, e depois só alinhavam a história? Não pode ser que eles escrevam, deixando simplesmente a história fluir, e aí vão arrumando à medida que as coisas acontecem. Acho que não.
- Na segunda-feira, sem falta, eu vou na loja reclamar desses tênis. Eu tenho certeza que falei praquele vendedor narigudo que queria um tênis com solado firme. E ele me vende esse à base de gelatina. Quero só ver se ele arranjar encrenca! (ele imita os trejeitos do vendedor narigudo) Ah, mas o senhor já usou o tênis! Como é que eu iria saber desse solado de merda se não usasse, digo eu na cara dele! Diz pra mim, diz!
- Se o escritor de suspense realmente monta esse roteiro prévio, então depois ele deve fazer uma desconstrução, escondendo alguns fatos e expondo outros, de maneira a deixar o leitor confuso, sem descobrir o fio da meada, até chegar ao fim apoteótico. Isso é mesmo genial.
- Preciso falar com o Reinaldo. Mas ele só vai na academia de terça-feira. E no primeiro horário ele vai treinar aquele gordinho metido, que fica de óculos escuros até no vestiário. Vou ter que esperar uns quarenta minutos, pelo menos. É de matar!
- Acho que nasce com a pessoa. Quer dizer, esse dom de montar e desmontar histórias complexas. Só pode ser. Um dom! De Deus!
- Descobriu o que é charneca? É melhor parar de conversar, porque o Júnior está na casa da sua mãe, e a megera já deve ter corrompido ele pro resto da vida.
- Minha mãe, megera! Nem vou falar da sua pra gente não se atrasar. Já acabou seus exercícios? Então simbora daqui.
Nos falamos?
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Muito legal! Realmente pensei que eles não se conheciam.
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