quinta-feira, 5 de março de 2009
Artigo Indefinido – Ano 1 – Nº 22
Num dia modorrento qualquer, o olhar pregado na tela do computador, fisgadas de dor – como pequenos e chatíssimos choques elétricos - percorrendo o braço num claro prenúncio de excesso de uso do mouse, uma vaga vontade de estar numa ilha do Caribe acompanhado pela Juliana Alves vestida de rainha da bateria, quando tudo é interrompido pelo celular que toca insistentemente. Um leve arrependimento toca o coração: porque diabos coloquei esse toque infantilóide no celular? Nem Deus sabe! Aí olho para o pequeno visor e avisto aquele primor de mensagem: restrito. Quem está ligando não quer ser identificado. Atendo com uma certa presteza, mais para fazer parar a musiquinha (“olha o passo do elefantinho”), do que propriamente pela ânsia de saber quem está ligando. E aí um novo desânimo: a musiquinha que indica ligação a cobrar. Quem será o verme que compôs essa irritante trilha sonora dos miseráveis? Espero sinceramente que o autor tenha sido pago regiamente com um cheque sem fundo, ou sustado. Ou, como diria muita gente que conheço: cheque assustado. O que não é de todo errado, tendo em vista o estado terminal de algumas contas correntes por aí. O cheque é apresentado no caixa para ser descontado, o funcionário do banco consulta o saldo e pimba! Leva um susto, e o cheque leva a fama. Taí a origem do cheque assustado. Surge a figura gloriosa do cheque indescontável. Enquanto a musiquinha infame estridula (que tal?) no ouvido, lembro da letra que algum gaiato bolou: tem pobre ligando pra mim. É irresistível tentar acompanhar a canção cantando baixinho: tem-pobre-ligando-pra-mim. Mas a moça da gravação logo corta meu barato musical e me instrui secamente sobre como proceder, e ato contínuo ouço a voz de uma outra moça, essa desesperada, que apenas geme: “Pai?” Nesse momento há um segundo de indecisão sobre como me comportar. Será que a Glorinha Khalil já mencionou alguma coisa a esse respeito no Fantástico? Qual será a regra de etiqueta para uma circunstância como essa? Traje esporte fino? Devemos falar com que tipo de entonação de voz? Qual deve ser a qualidade do nosso vocabulário? A primeira reação, instintiva mesmo, é a de deixar aflorar o traficante do morro carioca que habita em algum lugar obscuro da nossa cabeça, e dizer direta e francamente: “E aí, mina? Tá me tirando? Pra cima de moá? Eu lá botei mulher fêmea no mundo pra ficar me arranjando enrosco?” Mas, como diria aquela elegante canção, devidamente esgoelada pelo Nelson Ned, “Mas tudo passa, tudo paaaaassarááááááá”, e a vontade logo passa e me concentro na situação complicada. Primeiro: como a meliante sabe que sou homem, se nem sequer eu disse um mísero alô? Segundo, como avisar para ela, de uma maneira educada e gentil, que não tenho filha? Há uma tentação infame de levar a conversa adiante, fingindo ser um pai prestimoso, aflito com a situação da filha, seja lá qual for essa situação. Só para ver até aonde a coisa toda vai. Mas aí lembro que quem está pagando pela maldita ligação sou eu mesmo, e aí quem é o trouxa mesmo? Além disso, é difícil driblar a vontade de bater o recorde (pelo menos nacional) de dizer o maior número possível de descalabros no menor espaço de tempo. Então, sem mugir nem piar, desligo o telefone celular. E imagino a teatralidade por trás dessas toscas ações, que tanto assustam gente inocente. Aliás, não só assustam como vez ou outra devem render uns bons trocados, afinal a crise é grande, a concorrência é brava e o saldo na conta corrente tá pela hora da morte. Dizem que essas ligações vêm até de dentro de presídios, principalmente cariocas. Presídios ditos como de (in)segurança máxima. E assim ficamos, vulneráveis no acesso por celulares, ou por hackers que vivem tentando nos pegar de surpresa (semana passada recebi uma dezena de e-mails enviados pela Sra. Camila Costa, que comunicava alegremente seu casamento, e disponibilizava um inocente link para maiores informações; fiquei lisonjeado com a lembrança, mas deletei sumariamente todos os e-mails). Os vírus já infestam iPods, iPhones, computadores, periféricos, e por aí vai. É como uma brincadeira de esconde-esconde tecnológica. Cada vez mais nos cercamos de gadgets dos mais variados formatos e funções, repletos de proteções e bloqueios. E cada vez mais “eles” nos alcançam, nos assustando com a desfaçatez de uma criminosa criatividade. Sinto como se eu estivesse enfiado dentro de um armário, meio sufocado no meio das roupas, no escuro total, e aí de repente a porta se abre num solavanco, alguém grita no meu ouvido: “Achei”, e corre para o pique para confirmar, triunfante: “cidadão indefeso escondido no guarda-roupa do quarto da mãe, um dois três!”. E lá vai ele em busca do próximo otário. Nos falamos.
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Esta está excelente. E aí? Fazer o quê?? Nada! Aguardemos os próximos capítulos da criatividade marginal, rs!! bjks mils
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