quinta-feira, 19 de março de 2009
Artigo Indefinido – Ano 1 – Nº 24
No Artigo Indefinido nº 06, de 13/11/2009 (ainda postado no site do Terra), eu contei a história de um pequeno texto que elaborei para o Paulo Dionísio, o qual deveria fazer parte da cerimônia de conclusão de um curso de comunicação e oratória. Naquele texto eu tentei expressar o reverso do dito popular “uma imagem vale por mil palavras”, até chegar em alguma coisa como “uma palavra vale por mil imagens”. Se por um lado havia a intenção de provocar reflexões em cima de alguma coisa solidamente estabelecida ao longo do tempo, por outro também havia a idéia de puxar a sardinha para a minha brasa; ou seja, demonstrar, ainda que de maneira superficial, a importância das palavras no nosso imaginário. E isso me veio à mente na semana passada, por uma circunstância muito especial. Na quarta-feira, dia 11/03, o massoterapeuta (profissional que faz tratamentos através de massagens) Roberval Guedes narrou detalhadamente o dia em que ele perdeu definitivamente a visão. Não foi um acontecimento repentino, já que havia sido detectado o problema desde os sete anos de idade, e a perda definitiva foi aos vinte e cinco anos. Houve um aumento gradativo da perda, mas mesmo um pouco antes de quando ela finalmente ocorreu, ele ainda dispunha de visão suficiente para poder se locomover por si, sem o auxílio de outras pessoas. Claro que hoje, por seu espírito batalhador, por sua coragem, por seu destemor, Roberval segue a vida normalmente, de forma independente, contornando com um insuperável bom humor os obstáculos que a sua deficiência proporciona. A sua simples presença traz sempre uma energia contagiante, plena de alegria e de alto astral. A cada vez que ele irrompe no escritório, a bordo do seu inconfundível sorriso, o ambiente automaticamente fica mais feliz. Não é à toa que uma empresa convidou-o recentemente para dar uma palestra para seus funcionários, quando ele pode expor como faz para tocar a sua vida adiante, a despeito das limitações que a deficiência visual lhe impõe. Ou seja, ele realmente é um exemplo de perseverança e de iniciativa. E na quarta-feira da semana passada ele narrou, com simplicidade e de forma bem direta, como foram aqueles momentos que mudaram a sua vida. Foi em uma pequena cidade no interior de São Paulo, onde ele tinha ido visitar um parente e estava indo a pé para a rodoviária, para tomar o ônibus que o levaria de volta para casa. A tarde estava bem no final e o sol estava quase encostando na linha do horizonte, de frente para ele. Olhando para o sol, Roberval sentiu um incômodo, como se aquela luz o tivesse ofuscado temporariamente. Ele então olhou para o lado e viu um longo muro de uma escola, que havia sido pintado de branco. Aquela imagem do muro branco e o sol ofuscante no poente são as últimas imagens que Roberval traz na memória. Ele se lembra da dificuldade para chegar até a rodoviária e para retornar para casa. Lembra também que não ficou inteiramente cego naquele exato momento, mas que dali para frente as coisas se precipitaram, até o ponto em que ele se encontra hoje. Atualmente ele não consegue sequer enxergar o vulto das pessoas, distinguindo, quando muito, de que direção vem a luz, quando entra em um ambiente. Mas isso não o impede de trabalhar, de se divertir ou de estudar. Ontem, depois do expediente, pensei nas agruras das nossas vidas, comparando com aquelas que Roberval encontra no seu cotidiano, enquanto gravava para ele algumas expressões idiomáticas em inglês, acrescentando mais algumas palavras para ajudar a enriquecer seu vocabulário naquela língua. Há um tempo atrás eu já havia gravado para ele os verbos irregulares da língua inglesa, detalhando as grafias, explicando seus significados em português e informando a declinação para o tempo passado. Isso porque hoje ele estuda inglês, junto com os funcionários daquela mesma empresa que o convidou para a palestra. E enquanto eu falava para o pequeno gravador japonês que ele me trouxe, sozinho no escritório, envolvido pelo silêncio do fim do dia, fiquei imaginando a cena gravada na mente do Roberval, das últimas imagens registradas: a rua da pequena cidade do interior, o sol poente e o muro branco. A palavra narrada por ele formou um cenário na minha cabeça, a partir do meu próprio arquivo de imagens. E, para mim, essa cena que não presenciei ficará sempre como uma cena marcante, como em um final de filme, naquele momento em que olhamos para a tela e vemos o principal personagem caminhando resoluto, de encontro ao seu futuro. Uma história aconteceu até ali e uma outra história, que desconhecemos, acontecerá dali para frente. Assim foi com o Roberval: até ali, aos vinte e cinco anos, sua vida foi de um jeito, dali por diante outra história começou. A diferença é que ao fim do filme, satisfeitos (ou não) com a história contada, a luz se acende e voltamos para o nosso cotidiano, velho conhecido; para o Roberval, ao contrário, depois daquela cena as luzes se apagaram e ele entrou então para uma nova e desconhecida vida. E la nave va. Nos falamos.
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Querido, adoro quando você conta histórias. Muito bonita, esta. E o jeito poético como vc a compôs a deixou mais emocionante ainda.
ResponderExcluirBjks com saudades!!!
Haja coincidências neste mundo, meu caro mano!
ResponderExcluirNos idos dos anos 80, minhas costas travaram e o meu vizinho, e padrinho de casamento, Abílio (que Deus o tenha!) me levou a um fisioterapeuta estabelecido à R. Paulo Orozimbo, na Aclimação, próximo à residência de seus pais (do Abílio). O Dr. Ramon Hamu, excelente profissional, passou pelo mesmo ocorrido com o Roberval, praticamente da mesma forma! Sua cegueira ficou acentuada ao cursar medicina, o que decorreu numa drástica mudança de planos também. Ainda o visitei no início dos anos 90 e a partir de então não tive mais contato. Ele tinha um consultório em sua residência e também trabalhava na USP como professor.
Na verdade não se trata de coincidência. Se aprofundarmos uma pesquisa, constataremos que nesta área encontraremos muitos profissionais portadores dessa deficiência, todavia com a sensibilidade táctil extremamente aguçada.
É isso!