quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Artigo Indefinido – Ano 1 – Nº 48

- Eu não sou muito apegado às minhas convicções.

A frase ficou flutuando preguiçosamente pela cela, depois de ter sido entendida em alto e bom som pelos circunstantes. Protógenes, o autor da frase, levantou-se do chão, saindo da roda que estava formada em torno de um singelo jogo de baralho e foi até a janela gradeada e sem vidros. Havia uma luminosidade que penetrava obliquamente, um facho de luz fria, que delineava um retângulo irregular no chão. Ao chegar à janela Protógenes emitiu um longo e dolorido suspiro, acendeu mansamente um cigarro amassado, deu uma profunda tragada e colocou os dois braços para fora, em direção da noite escura. Manteve os braços esticados, com as palmas das mãos voltadas para baixo, como se indicasse sua desistência – do jogo de baralho, da prisão, das articulações, da vida, enfim.

- Não sou mesmo – repetiu, como quê para ninguém.

Sentado no cimentado frio, Alcebíades olhou atentamente para as cartas que tinha nas mãos, cartas escurecidas e engorduradas, milhares de vezes manipuladas pelas mãos rústicas e toscas de infinitos presos que por ali já haviam passado. Pousou-as no chão na sua frente, mantendo cuidadosamente as faces com os dados para baixo, como se o jogo pudesse ser retomado a qualquer momento, formando um pequeno leque de azul esmaecido. Levantou-se e foi até a porta, uma chapa de ferro fechando a entrada, pintada de um verde desbotado, com vários pontos de ferrugem, onde havia um buraco retangular na altura mediana, que servia tanto para passar a comida, quanto para observar o movimento do corredor da prisão, apesar da altura inconveniente. Alcebíades tirou do bolso um surrado espelhinho, com o desenho de uma mulher nua no verso, à guisa das antigas pin-ups, e colocou-o um pouco para fora da porta, passando-o pelo buraco e, abaixando-se, observou um pouco o corredor, ora para um lado, ora para o outro.

- Ananias deve ter sucumbido ao Deus Hypnos – murmurou Alcebíades – a essa altura deve estar no terceiro sono.

Da cama de cima do beliche de alvenaria, o nariz afundado em uma edição antiga de Guerra e Paz, Demóstenes remexeu-se, baixou o livro sobre a barriga e olhou por cima dos óculos de leitura em direção a Alcebíades.

- Morfeu. Nos braços de Morfeu. Ananias, o carcereiro, está nos braços de Morfeu – informou, laconicamente, progredindo vagarosamente as informações.

Alcebíades não se deu ao trabalho de olhar de volta para quem tinha falado com ele. Bafejou brevemente no espelhinho e passou com vigor a manga da camisa, buscando limpá-lo. Mirou-se no espelhinho, virando o rosto em vários sentidos, como se procurasse algum defeito. Só então respondeu:

- Morfeu era o deus dos sonhos. Filho de Hypnos, este sim deus do sono. Quando a gente diz “cair nos braços de Morfeu”, buscando dizer que caiu no sono, estamos cometendo um pequeno erro na mitologia. Hypnos dormia eternamente no fundo de uma caverna, onde tinha canteiros de papoula, de onde se extrai o ópio. A morfina, que foi descoberta por um farmacêutico alemão, que conseguiu isolar o alcalóide ativo do ópio, se chamou originalmente morphium, com pê-agá, aludindo a Morfeu. Mas Morfeu era o deus dos sonhos e seu pai, Hypnos era efetivamente deus do sono. Simples.

Demóstenes afundou o nariz novamente no livro, apoiado sobre a portentosa barriga, e apenas resmungou entre dentes: “sabe-tudo!”. Enquanto isso, Protógenes continuava ruminando sua indisposição, contrariado e insatisfeito. Só o que conseguiu pensar foi: “Morfeu, Hypnos, mitologia... De que vale a livre sabedoria para quem está encarcerado? Antes um ignorante solto do que um intelectual preso! Ou não!” E continuou mirando a noite pela janela.
Nos falamos.

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