quinta-feira, 25 de dezembro de 2008
Artigo Indefinido – Ano 1 – Nº 12
A voz potente do Tim Maia invadiu a cabine do carro e a música, iniciada num tom quase sussurrado, logo parte para um crescendo e faz reverberar os alto-falantes. Cheio de ginga e suíngue ele canta: “Você é algo assim: é tudo pra mim, é como eu sonhava, baby!”. A música se chama, apropriadamente, “Você”. E, como uma coisa leva a outra, logo passei a pensar na mais nova “moda” lingüística brasileira: como passamos a usar a palavra “você”. Interessante, nesse caso, é que na frase mais romântica da nossa língua (“Eu te amo”), desprezamos justamente o “você”. Porque não “eu amo você”? Acho que isso ocorre pela nossa tendência em tentar “caprichar” no vernáculo na hora de dizer alguma coisa mais profunda. “Eu amo você” acaba sendo uma forma muito singela e corriqueira para tratar de um assunto tão tocante (ainda que muitíssimo banalizado). Só dói quando leio alguma coisa como: “Eu ti amo”. Aí já é o assassinato da língua (que deve ter uma origem felina, já que sobrevive garbosamente, com suas sete vidas, a qualquer desses atentados). Mas tudo isso me remete a mais nova “muleta” da língua portuguesa: o uso exagerado e indevido do “você”. Um dia desses, pela manhã, o Prof. Marcelo Portugal (não confundir com o xará, ex-presidente do São Paulo FC, que morreu recentemente), ao ser entrevistado na rádio CBN pelo Heródoto Barbeiro, começou a dissertar, com muita propriedade técnica, sobre a crise financeira mundial, suas origens e suas conseqüências. E aí dá-lhe usar “você” à torto e à direita. “Na crise de 1929, você aumentou os juros, o que apertou a liquidez, quando você deveria ter feito o contrário”, “Você demorou a tomar uma atitude para socorrer o mercado”, “Você, você, você!”. Quem é esse “você” a quem ele se dirigiu reiteradamente? Não era o Heródoto Barbeiro, porque não teria a idade suficiente para ter tomado alguma atitude em 1929 (idéia esta que seria severamente contestada pelo comentarista Juca Kfhouri, já que ambos vivem trocando engraçadas farpas pelas ondas da CBN, sobre a idade “avançada” de um e de outro). Nem o pobre ouvinte, obrigado a ouvir essa forma estranha de comunicação. Esse ”você”, largamente utilizado nos comentários do professor, referia-se ao governo dos Estados Unidos, às pessoas que ocupavam cargos de decisão na esfera econômica. Então porque não dizer em alto e bom som a quem efetivamente o professor estava se referindo? É uma questão de economia, neste caso de palavras e de tempo de conversação? O que acontece é que isso não é uma ocorrência isolada. Isso é a ponta do iceberg: encontra-se essa forma de expressão em qualquer meio de comunicação, mas naturalmente na sua forma menos formal. Ninguém, em sã consciência, vai escrever e falar um texto formal usando essa característica curiosa e indevida. João Ubaldo Ribeiro, uma das maiores expressões da língua portuguesa (já disse isso em uma crônica anterior, mas nunca é demais falar: agraciado com o Prêmio Camões de 2008), chamou a nossa atenção há pouco tempo atrás, em sua crônica dominical no Estadão, para essa mania que já contaminou uma enormidade de pessoas, desde o falador Presidente da República (que deve ser aquele tipo de pessoa que discursa até quando abre a geladeira, atiçado pela luz que bate em seu rosto), até as pessoas de ocupações mais humildes. E confesso: eu já me peguei diversas vezes falando dessa maneira. Acreditem: é um vício difícil de exterminar. Como se trata de uma simplificação, evitar representa um esforço considerável. É preciso pensar antecipadamente no que se está falando, antes de perpetrar essa bobagem, e isso não é fácil. Em vez de dar os nomes aos bois, citando o sujeito efetivo das nossas frases, optamos pela simplificação que é usar indevidamente o “você”. Não sei se isso é apenas uma moda passageira, como muitas outras que impregnaram nossa maltratada língua em outros tempos. Ou se veio para ficar, afinal não podemos esquecer que a língua é dinâmica, sujeita a infinitas influências, mudando e evoluindo (ou involuindo, como neste caso, já que é seguramente uma situação empobrecedora), ao sabor das várias intervenções e interferências. Por isso a língua é considerada como uma entidade viva. Vá se saber até onde essa onda vai! Já estou vendo a hora em que um religioso vai fazer a sua pregação da seguinte forma: “Você criou o céu e a terra e no sétimo dia você descansou”. Senhor, tem piedade de nós! Nos falamos.
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