quinta-feira, 16 de abril de 2009
Artigo Indefinido – Ano 1 – Nº 28
É interessante o comportamento que temos diante de – vá lá! – nossos ídolos (não gosto do termo "ídolos", qualquer que seja a forma em que se apresente). E digo isso porque o Chico Buarque lançou recentemente seu mais novo livro (também não gosto do termo “último”, porque parece que não haverá outro depois): “Leite derramado”, pela editora Companhia das Letras. Pessoalmente, acho que ele está trilhando um caminho bastante difícil, mas muito louvável, ao se embrenhar em um campo da arte que não é o seu de origem. Aliás, hoje os comentaristas de futebol têm mais um termo típico: jogador-de-origem. Quando fazem um julgamento sobre determinado jogador, acrescentam esse novo dado: “Ah, fulano é centroavante de origem”. Com isso querem dizer que essa posição de jogar é aquela na qual o jogador é nato. Ele nasceu para aquilo. Ou seja, não é um jogador de outra posição, que foi adaptado para esta posição. E vice-versa (será que tem hífen?). Daí que o Chico Buarque acabou sendo perseguido por aqueles que não se conformam em vê-lo jogando em outra posição, que não seja a sua de origem. Incomoda a muitos um cantor que escreva. Ou, quem sabe, um escritor que cante. Mas isso é porque tudo se desloca da tal zona de conforto. É confortável ver o cantor fazendo o que se espera dela: cantar. Tanto para ele quanto para nós. Mas ele cisma em escrever. E isso acaba por incomodar. E aí alguns críticos falam mal da sua obra literária, principalmente porque estão imbuídos dessa aversão automática pela novidade. Isso mesmo depois de o cantor/escritor em questão já estar lançando seu quarto livro (desconsiderando peças teatrais e a novela “Fazendo Modelo”, que ele mesmo faz questão de não contar nessa nova fase). Já li críticas negativas começando pelo título. Não gostaram de “Leite derramado”. Pode realmente parecer prosaico, à luz da primeira leitura. Mas Chico é um mestre com as palavras, e isso, imagino, é algo difícil de contestar. Então o título deve ter algum significado que de início não nos salta aos olhos, mas que o teor da história vai revelar e justificar. Não vejo porque tanta gente (da crítica, é claro) torce o nariz para essa nova vertente artística. Na verdade nem como nova deve ser considerada. Chico sempre foi um sujeito profundamente literário. Sempre emaranhado nesse mundo das letras e das histórias. E eu vejo uma evolução nítida desde o primeiro livro. “Estorvo” eu mal consegui terminar de ler. Havia um incômodo (um estorvo! naturalmente) na forma e no conteúdo. Depois entendi melhor. Pulei “Benjamin” e li “Budapeste”. Este último é literatura de altíssimo nível. Daí me interessei por “Benjamin”, e gostei (mais do que o primeiro, mas menos do que o segundo). E o que dizer de antemão do novo livro? Talvez haja uma armadilha para o autor, porque alcançou um nível excelente no livro anterior, o que cria uma expectativa alta, tanto para ele quanto para nós, para o livro seguinte. E ele não teve medo de continuar. José Saramago, único prêmio Nobel de literatura em língua portuguesa, disse, a respeito de “Budapeste”: “Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com maestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com esse livro.” Que tal? Olhem só as primeiras palavras de “Leite Derramado”: “Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina.” É a história de um homem muito velho, que está prostrado em um leito de hospital. É uma saga familiar, descrevendo, em um livro curto (por se tratar de uma saga), de cerca de 200 páginas, a decadência social e econômica da família do velho, deixando entrever, como fundo de cena, a história do Brasil ao longo de duzentos anos. Não é pouca coisa. E a colcha de retalhos formada pelas memórias do velho, com lapsos temporais, com idas e vindas, desarticulada e embaralhada, vem a bordo da linguagem refinadamente simples desse escritor, que a cada dia que passa se revela mais fabuloso, deixando uma leva de leitores ávidos por sua produção. Pois que venha esse e muitos outros. Literatura, quando é boa, nunca é demais. Nos falamos.
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Pois é, meu caro amigo, desde que me entendo por gente ouço Chico - graças a você, diga-se de passagem. No passado os críticos diziam que ele cantava mal, mas ele seguiu cantando. Não acredito que a crítica chegue a influenciá-lo em sua 'produção' literária. Aliás, pra que serve a "crítica", que arte é essa? Se cada um tem direito à própria opinião mediante sua experiência, pra que ouvir a opinião de outro? Ah, sei lá...nos falamos!
ResponderExcluirAdalberto, gostaria de dizer que tenho gostado muito das crônicas, essas duas últimas, especialmente. Acho que não é só o Chico que tem grande talento com as palavras. Abs!
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